Ato II por dentro sou vermelha, por fora sou dourada

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Ato II por dentro sou vermelha, por fora sou dourada 〰️

O Ato II se insere num limiar instável entre consciência e dormência, onde a artista flutua: por vezes em transe, por vezes imobilizada, presa em ciclos de gestos automáticos que se repetem sempre em estado notívago. Após ser arrematada num açougue, desperta hipnotizada numa casa isolada, ela se depara com animais famintos e precisa se preparar para algo iminente. Os animais cercam. Ela curva o corpo, não como oferenda, mas como isca. A pose é vulnerável, a intenção, letal. A encenação é defesa. O tempo se alonga, tenso, sustentando o corpo entre a queda e o ataque. 

No sonambulismo, a presença atua sem o comando da mente desperta, a consciência assiste de outro plano. Os olhos deslocados do corpo da Santa Luzia, a padroeira da visão, tornam-se signos da dissociação e da vulnerabilidade. O olhar no prato é um circuito ainda pulsante de vigília, mesmo quando o organismo já repousa. 

Enquanto a paralisia do sono a captura, alguém, ou algo, a observa. São perturbações sutis causadas por presenças espirituais. A artista aceita a fissura: deixa que a linguagem e a carne se esgarçam. Nesse espaço de colapso e banquete, a intimidade se politiza através da inversão de espécies, da memória e do olhar fraturado da mídia. 

Sola, 2025.

Ato II da série “por dentro sou vermelha, por fora sou dourada”.

Impressão sobre papel Hahnemühle Photo Rag 308g;

51 x 81 x 4 cm.

detalhe.

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A cozinheira, o cavalo, seu banquete e a fumaça, 2025.

Ato II da série “por dentro sou vermelha, por fora sou dourada”.

Impressão sobre papel Hahnemühle Photo Rag 308g;

46 x 68 x 4 cm.

detalhe.

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fotografia externa.

fotografia por Ivan Padovani.

fotografia por Ivan Padovani.

fotografia por Ivan Padovani.

cuspir no pr.ato que comeu I, 2025

Ato II da série “por dentro sou vermelha, por fora sou dourada”

impressão em jato de tinta sobre prato de porcelana queimado em alta temperatura;

19,5 x 29 cm;

detalhe.

detalhe.

cuspir no pr.ato que comeu II, 2025

Ato II da série “por dentro sou vermelha, por fora sou dourada”.

impressão em jato de tinta sobre prato de porcelana queimada em alta temperatura;

19,5 x 29 cm;

detalhe.

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Calor de interiores, 2025.

Ato II da série “por dentro sou vermelha, por fora sou dourada”.

instalação multissensorial;

duas mesas retangulares; dez cadeiras; cortinas; tapetes; espelhos; louças; pratos; talheres; arranjos florais; velas, luminárias e lamparinas; lareira ecológica; lareiras elétricas; aquecedor; maquina de fumaça;

dimensões variáveis;

observações: Esta obra conta com inventário detalhado dos objetos que a compõem, disponível mediante solicitação.

fotografia externa.

Calor de interiores transforma a sala de jantar em uma câmara térmica. Duas mesas retangulares, cortinas vermelhas e louças compõem um cenário doméstico saturado por velas, luminárias, lamparinas, lareira ecológica, lareiras elétricas e aquecedores. O calor concentra o ar e acelera o tempo: as flores exibem ao vivo o percurso do frescor ao murchar, um relógio biológico visível. O público atravessa o ambiente fechado sentindo a temperatura subir, entre atração e incômodo. Inserida no Ato II de por dentro sou vermelha, por fora sou dourada, capítulo de vigília e transe, em que a encenação funciona como defesa, a instalação propõe um banquete que nunca se consuma: um forno interior onde vida e exaustão se roçam. 
 

Obs.: devido à alta temperatura, recomenda-se permanência breve e ventilação controlada durante a montagem. 

fotografia externa.

fotografia externa.

Emergi ao amanhecer… É estranho tudo que aconteceu desde a última vez que vi Yarince, naquele dia na água. Na cerimônia, os anciãos diziam que eu viajaria para Tlalocan, para os cálidos jardins orientais – país do verdor e das flores acariciadas pela tênue chuva –, mas me encontrei sozinha por séculos em uma moradia de terra e raízes, observando, atônita, meu corpo se desfazendo em húmus e vegetação. Tanto tempo nutrindo lembranças, vivendo da memória de maracas, estrondo de cavalos, motins, lanças, a angústia da perda, Yarince e os músculos fortes de suas costas.
Fazia dias que ouvia os pequenos passos da chuva, as grandes correntes subterrâneas aproximando-se de minha moradia centenária, abrindo túneis, atraindo-me por meio da porosidade úmida do solo. Sentia que o mundo estava próximo, dava para ver pelas diferentes tonalidades da terra. Depois, vi as raízes, como mãos estendidas, chamando-me, e a força do comando me atraiu irremediavelmente. Penetrei na árvore, em seu sistema sanguíneo, percorri-o como uma longa carícia de seiva e vida, um abrir de pétalas, um estremecimento de folhas. Senti seu toque rugoso, a delicada arquitetura de seus galhos, e me estendi nos corredores vegetais desta nova pele, me espreguiçando depois de tanto tempo, soltando meus cabelos, despontando para o céu azul de nuvens brancas para ouvir os pássaros que cantam como antes.
Também cantei com minhas novas bocas (teria gostado de dançar), e houve flores de laranjeira em meu tronco e, em todos os meus galhos, cheiro de laranjas. Eu me pergunto se, enfim, cheguei às terras tropicais, ao jardim de abundância e descanso, à alegria tranquila e interminável reservada para os que morrem sob o signo de Quiote-Tláloc, Senhor das Águas. Talvez seja meu destino passar a eternidade aqui.
Embora seja tempo de frutos, não de flores, a árvore se apossou do meu calendário, da minha vida, o ciclo de outros entardeceres: voltei a nascer, habitada com sangue de mulher. Ninguém sofreu neste nascimento, como aconteceu quando despontei a cabeça entre as pernas de minha mãe. Desta vez, não houve incerteza nem distensões na alegria. A parteira não enterrou meu xicmetayotl – meu umbigo – no canto escuro da casa nem me pegou em seus braços para dizer: “Estará dentro da casa como o coração dentro do corpo… Será a cinza que cobre o fogo do lugar.” Ninguém chorou ao me dar um nome, como fez minha mãe, angustiada, porque, desde o surgimento dos loiros, dos homens com pelos no rosto, todos os augúrios eram tristes. Até temiam chamar o adivinho para que me desse nome, me desse meu tonalli. Temiam conhecer meu destino. Pobres pais!
A parteira me lavou, purificou-me implorando a Chalchiuhtlicue – mãe e irmã dos deuses –, e nessa cerimônia me chamaram de Itzá, gota de orvalho. Deram-me meu nome de adulta, sem esperar que chegasse meu tempo de escolhê-lo, porque temiam o futuro. Agora, no entanto, tudo está tranquilo ao meu redor; há arbustos recentemente podados, flores em grandes jardineiras e uma brisa que me move, me balança de um lado para o outro como se me cumprimentasse, me desse as boas-vindas à luz depois de tanta escuridão. Este ambiente é estranho. Rodeiam-me muros. Construções de paredes largas como as que os espanhóis nos faziam erguer. Avistei uma mulher. A que cuida do jardim. É jovem, alta, de cabelos escuros, bonita. Tem traços parecidos com os das mulheres dos invasores, mas também tem o andar das mulheres da aldeia, com determinação, como nos mexíamos e andávamos antes dos maus tempos. Eu me pergunto se ela trabalha para os espanhóis. Não acho que trabalhe com a terra nem saiba tecer. Tem mãos finas e olhos grandes, brilhantes. Brilham com o assombro de quem ainda descobre. Tudo ficou em silêncio quando se foi. Não escutei sons do templo, movimento de sacerdotes. Só a mulher habita esta moradia e seu jardim. Não tem família nem senhor, e não é deusa porque teme: trancou portas e cadeados antes de ir embora.


— Belli, Gioconda. A mulher habitada.