Ato II por dentro sou vermelha, por fora sou dourada

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Ato II por dentro sou vermelha, por fora sou dourada 〰️

O Ato II se inscreve num limiar instável entre consciência e torpor, onde a artista flutua: por vezes em transe, por vezes imobilizada, presa em ciclos de gestos automáticos que se repetem noite adentro. Após ser arrematada num açougue e despertar hipnotizada numa casa isolada, ela se depara com animais famintos e precisa se preparar para algo iminente.

No sonambulismo, a presença atua sem o comando da mente desperta, a consciência assiste de outro plano. Os olhos deslocados do corpo de Santa Luzia, padroeira da visão, tornam-se signos da dissociação e da vulnerabilidade. O olhar no prato é um circuito ainda pulsante de vigília, mesmo quando o organismo já repousa.

Enquanto a paralisia a captura, alguém, ou algo, a observa. São perturbações sutis causadas por presenças espirituais. A artista aceita a fissura: deixa que linguagem e carne se esgarcem. Nesse espaço de colapso, a intimidade se politiza através do gênero, da memória e do olhar fraturado da mídia.

Sola, 2025.

Ato II da série “por dentro sou vermelha, por fora sou dourada”.

Impressão sobre papel Hahnemühle Photo Rag 308g;

51 x 81 x 4 cm.

detalhe.

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A cozinheira, o cavalo, seu banquete e a fumaça, 2025.

Ato II da série “por dentro sou vermelha, por fora sou dourada”.

Impressão sobre papel Hahnemühle Photo Rag 308g;

46 x 68 x 4 cm.

detalhe.

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Fotografia externa.

Fotografia por Ivan Padovani.

Fotografia por Ivan Padovani.

Fotografia por Ivan Padovani.

Emergi ao amanhecer… É estranho tudo que aconteceu desde a última vez que vi Yarince, naquele dia na água. Na cerimônia, os anciãos diziam que eu viajaria para Tlalocan, para os cálidos jardins orientais – país do verdor e das flores acariciadas pela tênue chuva –, mas me encontrei sozinha por séculos em uma moradia de terra e raízes, observando, atônita, meu corpo se desfazendo em húmus e vegetação. Tanto tempo nutrindo lembranças, vivendo da memória de maracas, estrondo de cavalos, motins, lanças, a angústia da perda, Yarince e os músculos fortes de suas costas.
Fazia dias que ouvia os pequenos passos da chuva, as grandes correntes subterrâneas aproximando-se de minha moradia centenária, abrindo túneis, atraindo-me por meio da porosidade úmida do solo. Sentia que o mundo estava próximo, dava para ver pelas diferentes tonalidades da terra. Depois, vi as raízes, como mãos estendidas, chamando-me, e a força do comando me atraiu irremediavelmente. Penetrei na árvore, em seu sistema sanguíneo, percorri-o como uma longa carícia de seiva e vida, um abrir de pétalas, um estremecimento de folhas. Senti seu toque rugoso, a delicada arquitetura de seus galhos, e me estendi nos corredores vegetais desta nova pele, me espreguiçando depois de tanto tempo, soltando meus cabelos, despontando para o céu azul de nuvens brancas para ouvir os pássaros que cantam como antes.
Também cantei com minhas novas bocas (teria gostado de dançar), e houve flores de laranjeira em meu tronco e, em todos os meus galhos, cheiro de laranjas. Eu me pergunto se, enfim, cheguei às terras tropicais, ao jardim de abundância e descanso, à alegria tranquila e interminável reservada para os que morrem sob o signo de Quiote-Tláloc, Senhor das Águas. Talvez seja meu destino passar a eternidade aqui.
Embora seja tempo de frutos, não de flores, a árvore se apossou do meu calendário, da minha vida, o ciclo de outros entardeceres: voltei a nascer, habitada com sangue de mulher. Ninguém sofreu neste nascimento, como aconteceu quando despontei a cabeça entre as pernas de minha mãe. Desta vez, não houve incerteza nem distensões na alegria. A parteira não enterrou meu xicmetayotl – meu umbigo – no canto escuro da casa nem me pegou em seus braços para dizer: “Estará dentro da casa como o coração dentro do corpo… Será a cinza que cobre o fogo do lugar.” Ninguém chorou ao me dar um nome, como fez minha mãe, angustiada, porque, desde o surgimento dos loiros, dos homens com pelos no rosto, todos os augúrios eram tristes. Até temiam chamar o adivinho para que me desse nome, me desse meu tonalli. Temiam conhecer meu destino. Pobres pais!
A parteira me lavou, purificou-me implorando a Chalchiuhtlicue – mãe e irmã dos deuses –, e nessa cerimônia me chamaram de Itzá, gota de orvalho. Deram-me meu nome de adulta, sem esperar que chegasse meu tempo de escolhê-lo, porque temiam o futuro. Agora, no entanto, tudo está tranquilo ao meu redor; há arbustos recentemente podados, flores em grandes jardineiras e uma brisa que me move, me balança de um lado para o outro como se me cumprimentasse, me desse as boas-vindas à luz depois de tanta escuridão. Este ambiente é estranho. Rodeiam-me muros. Construções de paredes largas como as que os espanhóis nos faziam erguer. Avistei uma mulher. A que cuida do jardim. É jovem, alta, de cabelos escuros, bonita. Tem traços parecidos com os das mulheres dos invasores, mas também tem o andar das mulheres da aldeia, com determinação, como nos mexíamos e andávamos antes dos maus tempos. Eu me pergunto se ela trabalha para os espanhóis. Não acho que trabalhe com a terra nem saiba tecer. Tem mãos finas e olhos grandes, brilhantes. Brilham com o assombro de quem ainda descobre. Tudo ficou em silêncio quando se foi. Não escutei sons do templo, movimento de sacerdotes. Só a mulher habita esta moradia e seu jardim. Não tem família nem senhor, e não é deusa porque teme: trancou portas e cadeados antes de ir embora.


— Belli, Gioconda. A mulher habitada.